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quarta-feira, 21 de março de 2012

A função social da propriedade


Dificuldades em defender, com palavras, a vida

Luciano de Camargo Penteado
Professor Doutor da FDRP-USP


Artigo publicado na 34 edição do Jornal Estado de Direito

Os textos de João Cabral de Melo Neto são exemplo de superação daquilo que aponta como dificuldade intransponível. O final de Morte e Vida Severina, história dos severinos, nome próprio que se torna comum, é um elogio a antepor os fatos às palavras, lembrando Shakespeare, no diálogo do balcão (Romeu e Julieta). Na peça inglesa, fala-se que a rosa é uma rosa e tem o mesmo aroma, mesmo que tivesse outro nome. No direito, os fatos também tem prioridade sobre as normas, embora o positivismo e outras escolas queiram o contrário. No caso Pinheirinho, como em outros envolvendo conflitos fundiários por todo o Brasil, o aroma não é de rosas, mas mau cheiroso. 


O Le Monde diplomatique – Brasil, de fevereiro de 2012, traz várias matérias e uma entrevista com a professora Raquel Rolnik, da FAU-USP, sobre a crise fundiária atual. A chamada na capa já exala o odor de queimada, o incêndio fotografado fala por si só. É a moradia que está em questão, ocultada no debate político que, mais uma vez se partidarizou. Em 23 de fevereiro de 2012, um mês e um dia após a expulsão dos moradores da área de São José dos Campos, o senador Aloysio Nunes se negou a participar da audiência pública no Senado para discutir o caso, alegando partidarização do senador, Eduardo Suplicy. O primeiro, do PSDB, alega manipulação do tema para minar o poder de seu partido em São Paulo e o opositor, do PT, o convida a comparecer diante da gravidade do tema, objeto de carta de denúncia firmada por várias autoridades e membros da sociedade civil, encabeçada pelo Professor Fábio Konder Comparato, dirigida à OEA.

Os romanos, gênios do direito, cunharam uma expressão, retomada em substância até mesmo por autores atuais, como Jürgen Habermas no conhecido livro, Entre faticidade e validade. A frase romana ex facto oritur ius, do fato se origina o direito, mostra que há elementos fatuais na estrutura constitutiva do jurídico.

Em matéria fundiária, isso também se reflete, por exemplo, na usucapião. O próprio termo, composto de usus (uso) e capere (adquirir), aponta que a posse prolongada no tempo defere um direito novo, por aquisição originária. É o fato gerando o direito. Tomás de Aquino distinguia, na propriedade, uso de fato e poder jurídico, afirmando que ela só se legitima pelo uso. Não adianta ter a titularidade de um direito formal, sem o uso de fato, que o justifica. Esta a raiz do conceito de hipoteca social, como possibilidade de retomada para a maioria, dos bens da minoria, quando improdutivos.

Como as terras no Brasil são de origem pública, a destinação universal fica mais evidente. Esta função social é um dos fundamentos das sociedades republicanas, porque a República, também em seu étimo, é a coisa de todos. Cícero dizia res publica, res omnia, a coisa pública é a coisa de todos. No direito, a categoria dos bens públicos de uso comum do povo, como mares, rios, praias, praças e até mesmo o meio ambiente, mostra de modo claro que há bens de destinação universal. A propriedade privada tem uma destinação universal em sua estrutura intrínseca, pela cláusula geral de função social (art. 5º, XXIII da CF/1988 e art. 1.228 § 1º do CC).

A função social da propriedade se fundamenta na distinção entre uso efetivo e titularidade formal de uma situação jurídica de direito real. Assim, por exemplo, a Constituição Federal brasileira prevê mecanismos de desapropriação de imóveis, urbanos ou rurais, pelo não uso efetivo. É a perda do direito pelo não exercício do seu conteúdo. Outra vez, o fato altera o direito.

Com essa argumentação, não se defende a sociologização absoluta do direito hoje, mas apenas maior valorização dos fatos, ocultados pelo discurso estritamente legalista que disfarça, a pretexto da generalidade da lei, interesses particulares, muitas vezes mesquinhos. Até do ponto de vista pedagógico esta tendência precisa ser revalorizada, pelo uso do método do caso. O direito não se manifesta apenas pelo sistema, mas também pelo problema, pelo fato.

Veja-se, por exemplo, o que ocorreu na área conhecida como Pinheirinho, em São José dos Campos, ou na Favela do Pullman, em São Paulo, Capital. No Pinheirinho, uma reintegração de posse conseguiu que os ocupantes fossem retirados a fórcepsdo local, na Favela do Pullman, uma reivindicatória de lotes objetivava recuperar o que se tornara uma favela urbanizada por programas públicos. A pretensão dos autores de ambas as ações era fundada no caminho inverso ao aqui proposto, iam do direito formal, ao fato concreto. Mesmo que a possessória se funde no fato possessório, este já é fato jurídico e ela protege, enquanto ação, um direito, que é o direito de posse. No caso Pinherinho, a execução da ordem de reintegração, em 22 de janeiro de 2012, ainda é questionada por várias pessoas e instituições. Curiosamente, no caso da favela paulistana, a solução foi diametralmente oposta à do Pinheirinho. Os possuidores venceram a demanda, graças ao voto do então Desembargador do TJSP, Dr. José Osório de Azevedo Jr..

A decisão do caso da Favela do Pullman foi publicada na RT nº 723, seguida de comentários. A decisão, mantida pelo STJ anos depois, tem sua relevância destacada no primeiro parágrafo dos comentários: “O acórdão que está na mira dessas anotações é daqueles casos em que corajosamente se questionam algumas das estruturas fundamentais do ordenamento jurídico, e, por consequência, o sistema como um todo”. O relator concluiu que houve perda da propriedade, porque o que se reivindicara eram lotes que nunca existiram e se transformaram em núcleo urbano de população pobre. O direito pereceu pela perda do objeto, o fato venceu novamente. O trecho do voto é claro: “Loteamento e lotes urbanos são fatos e realidades urbanísticas. Só existem, efetivamente, dentro do contexto urbanístico. Se são tragados por uma favela consolidada, por força de uma certa erosão social, deixam de existir como loteamento e como lotes. A realidade concreta prepondera sobre a «pseudo-realidade jurídico-cartorária»”. Esta frase é monumento à humildade de reconhecer a autonomia do objeto interpretando. Ele têm existência própria e independente do aplicador e do estudioso. O fato vem sempre antes do direito.

As terras são também projeção material das pessoas. Não só porque a moradia é direito fundamental da pessoa, mas porque é nelas que se realiza enquanto tal. Constroi sua personalidade no espaço físico, sonha com a casa própria. Suas lágrimas, ao tocarem o solo, fecundam projetos e gerações.

Os romanos cultuavam os antepassados e a chama que crepitava em suas casas, evocava o contato com eles, vistos como divindades. Os deuses lares, como eram conhecidos, aqueciam a sua vida, como as fogueiras dos acampamentos de movimentos sociais tantas vezes deram e continuam a dar o calor que a sociedade civil não lhes proporciona. Como o Brasil tem muitos problemas de terra, esse calor não pode faltar. Somos terra brasilis, um de nossos símbolos é uma árvore, o pau-brasil, cujo caule aberto é vermelho, como o fogo dos romanos. Que lembremos disto neste novo ano letivo de 2012 e sempre, para tornar dias e noites mais cálidos para quem sente o frio de indiferença. Só assim o cheiro da queimada que destrói se converte no aroma adorável dos nós-de-pinho.

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